quinta-feira, 15 de abril de 2010

Meritocracia x Cidadania: a questão salarial dos professores

O governo de São Paulo aprovou a Lei de Valorização pelo Mérito, que tem na aplicação de avaliações um requisito para a valorização salarial dos professores, a depender obviamente da aprovação destes. O discurso e prática que cerca esta medida é o da meritocracia.


A meritocracia é tida em nossa sociedade como um valor quase que inconteste. Está presente desde os vestibulares até o mercado de trabalho, que seleciona os “melhores” e exclui os “piores”. A força do argumento meritocrático é fruto da hegemonia do liberalismo em nossas sociedades, ideologia que prevê a competição entre indivíduos iguais. Essa competição conduziria a sociedade ao bem-estar.

A prática meritocrática, aplicada ao problema da questão salarial dos professores, tenderá a gerar a competição entre o corpo docente, especialmente pelo fato de que no máximo 20% dos avaliados poderão receber a promoção que aumenta o salário, independentemente da quantidade de aprovados. Esta restrição, que é justificada pelo governo estadual como consequência de suposta falta de verbas, tende a tornar a competição mais voraz. Falta de verbas ou má-fé, o fato é que se terá assim uma verdadeira lógica de Mercado na Educação: a alocação de recursos escassos, no caso, de salários maiores aos professores que vencerem a “concorrência”. Aos olhos da meritocracia, seria o justo.

Um critério que podemos contrapor ao meritocrático é o da cidadania. Se o primeiro foca a eficiência como justificadora dos aumentos salariais; o segundo critério tem a justiça como chanceladora da melhoria salarial. Ou seja, para a cidadania, obviamente, o professor deve ser antes de tudo um cidadão, o que por si só justifica o recebimento de um salário digno, que supra suas necessidades e de sua família, e permita ao docente desfrutar de tempo livre para o lazer e o aprimoramento.

Desta forma, a questão salarial dos professores passa por dois caminhos: o da cidadania, que implica a união, a luta coletiva e uma solução pública e política para o problema; e o meritocrático, que valoriza a competição, as avaliações individuais e uma solução técnica e privada para a questão salarial.
A meritocracia privatiza a questão salarial: um problema público e de responsabilidade do governante de plantão é transferido e pulverizado em milhares de problemas individuais, eximindo-se os governantes de responsabilidades.
Embora o critério meritocrático tenha a eficiência como uma questão explícita em seu discurso, a cidadania também foca a eficiência, só que implicitamente, de maneira indireta. Na primeira, mais eficiência seria um meio de se alcançar salários melhores; já na ótica da cidadania, salários melhores fariam com que os professores precisassem trabalhar menos, o que tenderia a melhorar o rendimento em sala.
Tais discursos refletem a divisão entre Direita e Esquerda, e propõem soluções através de caminhos diferentes. Porém, cada uma dessas ideologias pode ter o resultado que é pretendido pela outra. Em determinados momentos e ambientes, pode ser mais justo valorizar pelo mérito; em outros, pode ser mais eficaz adotar o critério da cidadania e valorizar a todos. O Bolsa-Família e seu impacto na economia é um grande exemplo disso: um programa que visa à cidadania, na verdade, tornou a economia nacional mais eficiente, na medida em que ajudou a criar mercado interno.

No caso dos professores paulistas, a elevação salarial não só é uma questão de justiça e cidadania, é também uma questão ligada à eficiência dos docentes.

A situação do professorado paulista é a da sobrecarga de trabalho, haja vista os baixos salários que os obrigam a extensas jornadas para conseguir um salário medíocre. Os professores beiram a sub-cidadania: trabalham em escolas que mais parecem cadeias; sofrem desrespeito de alunos, pais e Estado; jornada tripla de trabalho que se completa em casa, inclusive aos finais de semana; enfim, um grau de estresse que muitas vezes chega a privar muitos docentes de uma vida afetiva.
Dessa forma, cobrar “mérito” e mais esforço de quem já está no limite, além de crueldade, constitui um meio de se conservar a situação tal como ela se encontra – porém transferindo a culpa do fracasso educacional aos docentes. É sabido que nessas circunstâncias de sobrecarga, os docentes não teriam tempo de se preparar para as “provinhas”, e a própria pré-condição de que pelo menos 80% deles não receberão a promoção já nos confirma que tal Lei de “Valorização” não passa de demagogia para entusiasmar direitista, na medida em que deixa tudo como está.
Uma elevação salarial a patamares dignos, além de uma questão de dignidade, é algo que repercutiria na eficácia dentro da sala de aula, pois os professores não mais precisariam enfrentar jornada excessiva de trabalho. Além disso, os alunos não tem nada a ver com a ideologia do governo de plantão, eles merecem ter professores bem-pagos, que cheguem descansados para lecionar, independentemente de qualquer coisa.

Sabemos que a cidadania está relacionada com a renda que o indivíduo obtém. Assim, para que os alunos aprendam a ser cidadãos é preciso, no mínimo, que seus professores também o sejam - o que torna indispensável que estes recebam salários dignos. Afinal, a cidadania, as condições dignas de trabalharmos e vivermos não podem ser um privilégio dos que passam em "provinhas" do governo.

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